segunda-feira, 2 de julho de 2018

PERGUNTA: Sendo o transe ritualístico visto como demonstração de possessão demoníaca, as adivinhações e oferendas votivas taxadas de barbarismo primitivo e bruxaria, desde o Brasil colonial até os dias de hoje, e diante de uma sociedade que cobra uma postura ecológica das religiões, não "permitindo" sacrifícios animais, como as tradições africanistas, com todas essas rejeições, saíram das lembranças dos negros escravos e se perpetuaram como práticas vigentes nas coletividades urbanas?



RAMATÍS: - Os padres tiveram interesses ambíguos na catequização dos negros: se por um lado queriam disciplinar as crenças religiosas de acordo com os sacramentos católicos, por outro faziam "vista grossa" às suas danças e cânticos realizados aos domingos e feriados nas fazendas, em frente às senzalas, pois entendiam tratar-se de mero folclore. 
Os clérigos foram engambelados pelos escravos que diziam realizar o "batuque" para os santos católicos, usando porém a língua natal. Agindo dessa forma, mostravam os congás (altares) improvisados num canto da entrada da senzala, junto com as imagens de Jesus, Santo Antônio, São Jerônimo, São Sebastião e São Jorge. Mas em segredo, arriavam as oferendas votivas em local escondido, no chão de seus alojamentos, como firmeza vibratória aos "deuses" cultuados. Longe dos olhos dos brancos católicos, eles "incorporavam" suas divindades, manipulavam objetos, como pedras, ervas e essências, e ofertavam o sangue de animais sacrificados para que fossem vitalizados e pudessem entrar em contato com os planos ocultos, a fim de prever o futuro, curar doenças, melhorar a sorte e transformar os destinos das pessoas. Contudo, se assim fossem vistos pela comunidade eclesiástica, seriam proibidos e acusados de bruxaria, e poderiam perder a vida. Na verdade o ponto central da questão é que na época colonial escravocrata, o catolicismo também possuía um apelo mágico. Era preciso que suas lideranças combatessem a crença primitiva em espíritos diabólicos que podiam se apoderar do corpo dos fiéis, pedir sacrifícios animais sanguinolentos e operar curas, distinguindo-a da fé nos santos, nas almas benditas e milagreiras.
Na opinião dos clérigos, urgia separar o simbolismo ritualístico da ingestão da hóstia, bem como os milagres propiciados pelo corpo e sangue derramado do Cristo na cruz, dos atos concretos, arcaicos e selvagens de negros ignorantes sem alma, mesmo que a hipocrisia dos homens, em seu imediatismo diante das leis cósmicas, ainda hoje não separe uma coisa da outra, eivados que estão de intenções de favorecimento, seja diante do mundo dos Céus católico ou da morada africanista dos orixás.
Com a alforria dos escravos, essas práticas mágicas foram popularizadas e se espalharam pelas periferias das cidades que se formavam.
Os ritos iniciáticos de divinização dos antigos clãs tribais foram terrivelmente distorcidos: os ex-escravos começaram a cobrar pela magia como forma de sobreviver na nova condição de "libertos", desrespeitando o livre-arbítrio dos cidadãos a quem se destinavam suas oferendas votivas pagas, agravando negativamente o merecimento de toda a coletividade, branca e negra, apegada aos fetichismos mágicos de "resultado" imediato. 


(Origem: “A Missão Da Umbanda” Ramatís/Norberto Peixoto – Editora do Conhecimento)